IMAGEM DISTORCIDA

Espiritualidade – Quebrando o Silêncio

Como os traumas da infância influenciam nossa percepção sobre Deus.
THALITA SILVA

Imagine a seguinte cena. É madrugada. O bebê acorda com o desconforto da
fralda molhada e com fome. Então, ele começa a chorar. Próximo dali sua
mãe se levanta para ver o que está acontecendo. Ela chega perto da criança e, com uma voz cheia de ternura, a chama pelo nome, dizendo-lhe frases cheias
de carinho e afeto. O bebê reconhece sua voz, sente seu cheiro, seus olhares
se cruzam e logo ele se anima e começa a se acalmar. A mãe continua a falar amorosamente enquanto realiza as operações necessárias para a troca da fralda e a amamentação. Ao dar-lhe o seio, seus olhares se cruzam novamente e,
enquanto ele suga vigorosamente, ela continua acariciando seu rosto e falando
palavras tranquilizadoras e sons familiares. Essa cena narrada por James W.
Fowler no livro Estágios da Fé (Sinodal, 1992) descreve o momento em que
todos iniciamos nossa jornada espiritual: quando bebês.
É nessa mutualidade e interação nos primeiros meses de vida que as pré-imagens
de Deus se originam. Tudo o que virá depois no desenvolvimento da fé ao longo

da vida depende da qualidade das experiências com as pessoas que dispensam cuidados
e amor primários; ou o oposto, em situações de abandono, violência, privação de afeto
e atenção.
A maioria das pesquisas sobre o desenvolvimento da fé em crianças conclui que
“as ideias acerca de Deus vêm da interação das crianças com ambos os pais e são uma
combinação de características maternas e paternas” (Donna Habenicht, Como Ajudar
Seu Filho a Amar Jesus [CPB, 2011], p. 69).
As vivências de amor, confiança e obediência advindas desse relacionamento constituem o
alicerce para experiências espirituais sólidas ao longo da vida.
Estudos recentes no campo da neurociência têm revelado a importância dos primeiros mil dias da criança e a força dos vínculos afetivos com os pais construídos nesse período. Por outro lado, as pesquisas também têm mostrado os prejuízos e as perdas geradas
por experiências adversas que podem prejudicar a arquitetura do cérebro com efeitos
negativos que perduram por toda a vida.

DESCARACTERIZAÇÃO DO AMOR DIVINO
Mas o que ocorre se esse vínculo é violado devido ao abuso sexual por parte de alguém em quem a criança deveria confiar?
Sem dúvida, além das consequências físicas e emocionais da violência, haverá um sério
dano na capacidade de confiar nos adultos e em Deus, a quem esses adultos representam nessa fase.
À medida que a criança cresce, suas relações sociais se estendem para convívios além
do círculo familiar, não apenas com outras crianças, mas com adultos socialmente investidos de autoridade, como professores e líderes de comunidades religiosas. Essas
pessoas passam a influenciá-la fortemente por meio do exemplo, de suas ações e de
seu temperamento. A religiosidade se desenvolve impulsionada pelas experiências e
histórias de fé que a criança passa a observar nesses adultos, bem como nas narrativas que exemplificam as virtudes e os valores religiosos. A influência exercida por eles pode ser
positiva ou negativa, pois as atitudes falam muito mais do que as palavras. E, como esponjas, as crianças são capazes de absorver e registrar impressões da perspectiva do outro.

Ao sair lentamente do egocentrismo característico da primeira infância e começar a se
interessar pelo mundo que a cerca e por pertencer a uma comunidade, a referência de pessoas
“dignas de confiança” e de ser
imitadas se expande para além
dos pais. Isso inclui o círculo da escola e da igreja. Assim, a fé se desenvolve quando a criança convive com pessoas maduras espiritualmente, passa a observá-las e assimilar suas
crenças. Porém, quando ela é vítima de abusos praticados por
professores, líderes religiosos, amigos da família, entre outros
adultos investidos socialmente de autoridade, uma ruptura é
produzida em sua ainda frágil construção de valores morais e
religiosos. Além de minar sua capacidade de amar e confiar,
isso pode imprimir imagens de terror e destrutividade associadas à ideia de que ela é culpada,
suja, pecadora e indigna de perdão: “Deus não pode me amar”
ou “se Deus me amasse, não deixaria isso acontecer”.
Podemos concluir que as consequências do abuso sexual
praticado por aqueles que deveriam manter as crianças seguras
e protegidas ou por aqueles que deveriam representar, por seu
exemplo, o conjunto de crenças de uma comunidade de fé, têm
potencialmente a capacidade de impedir o desenvolvimento da
religiosidade na criança.


O processo de restauração frequentemente envolve o auxílio de um profissional ou conselheiro cristão. Deus pode oferecer cura, graça e força para superar o trauma causado pelo
abuso. As vivências de amor, confiança e obediência advindas
do relacionamento entre pais e filhos constituem o alicerce para
experiências espirituais sólidas ao longo da vida.


THALITA SILVA é doutora em Educação e atua como assessora pedagógica