A TEOLOGIA DA FAMÍLIA ADVENTISTA

Relacionamentos sempre foram um desafio e, na atualidade, não é diferente. Mas é alarmante o avanço da instabilidade da família nessas últimas décadas. O conhecido escritor e filósofo Zygmund Bauman identifica a sociedade atual como aquela que continua buscando contato, mas que “não quer pagar o preço da intimidade”. De certa forma, o padrão social de hoje tende a fugir de relacionamentos que envolvam compromisso e empurrar o ser humano cada vez mais para o isolamento.

Na realidade, vivemos uma síndrome moderna que defino como a ideia da felicidade individual absoluta. Isto faz com que o indivíduo idealize um tipo de relacionamento com expectativas incoerentes, que seja livre de frustrações, e apenas com experiências individuais felizes, e que jamais comprometam sua autonomia. E, como fica a família adventista nesse cenário atual?

Uma síndrome moderna e a restauração pela família

Martin Buber, um psiquiatra e escritor que viveu no século passado, declarou que existem dois tipos de relacionamento: “Eu – Você e Eu – Objeto”. “EuVocê” considera as necessidades emocionais do outro; o “Eu-Objeto” só vê a utilidade do outro. Praticamente podemos sintetizar a falta de compromisso nos relacionamentos atuais na síndrome do Eu-Objeto. O fato de considerarmos o outro como um objeto dificulta a tolerância com as falhas humanas, presentes nos ajustes de qualquer experiência familiar ou conjugal.

Partindo deste pressuposto, a restauração da família começa com a restauração do indivíduo. Costumo usar em meus seminários a máxima que diz que “a felicidade do meu relacionamento começa comigo”, e percebo uma reação de desconforto do auditório, porque muitos que estão ali sentados me ouvindo creem que a solução para seu relacionamento depende unicamente do outro.

Paulo destaca a importância desse assunto em dois momentos, com as famílias da igreja cristã primitiva: primeiramente ele fala do princípio: “Não pensem unicamente em seus próprios interesses, mas preocupem-se também com os outros e com o que eles estão fazendo.” Filipenses 2:4 (Bíblia viva). No segundo momento, o apóstolo identifica as demandas de uma atitude individualista ao alertar que “qualquer um que não cuide dos seus próprios parentes quando eles necessitam de ajuda, especialmente aqueles que vivem na sua própria família, não tem direito de dizer que é cristão. Tal pessoa é pior que um pagão”. I Timóteo 5:8 (Bíblia Viva).


A família começa com a singularidade de cada integrante
Vivemos em tempos de mudanças intensas e frequentes. Consequentemente, essa instabilidade de parâmetros influencia os pensamentos da sociedade, bem como suas referências. De certa forma, isso também atinge os cristãos e suas famílias, direta ou indiretamente. Por isso é relevante identificarmos algumas consequências emocionais, espirituais e físicas que isto tem causado. Vejamos alguns desses exemplos:

1. Quando Ellen G. White aborda a questão do individualismo e do isolamento, ela esclarece que “aquele que se encerra dentro de si mesmo, não está preenchendo a posição que era desígnio de Deus que ele ocupasse.” Então ela justifica que, “quando o pensamento se concentra no próprio ‘eu’, é afastado de Cristo, a Fonte de vigor e vida.

2. A terapeuta de família Maria Consuelo Passos identifica as relações interpessoais desafetadas como resultado de “indivíduos encapsulados” , que prezam unicamente pela satisfação própria.

3. Impressionam as consequências físicas do isolamento apontadas em uma matéria da revista Veja , que traz um artigo científico publicado no jornal Heart, da Sociedade Cardiovascular Britânica. O artigo alerta que o risco de solitários infartarem é 29% mais alto e de sofrerem derrame é de 32% mais elevado em comparação com as pessoas mais sociais.
A família pode ser um ambiente de amadurecimento emocional e espiritual
Com essas considerações, vamos abordar os recursos divinos para as sequelas modernas, apresentados em Gênesis 2. O primeiro princípio está no verso 18, quando, nos momentos conclusivos da criação, Deus identifica a solidão do ser humano como um intruso, e a criação da mulher como solução. A família representa o espaço por excelência para solucionar a negatividade da solidão, para tanto recebe a bênção divina e a participação humana. Com isso, desde seu início, a família carrega em si a doação recíproca, como um dos princípios e um dos segredos da vida.

É a partir dessa lógica que Gênesis 2:24 aborda o método para eliminar o isolamento e, também, como acontece a mudança do espaço individual para o coletivo. A associação entre o “homem” (’ish) e a “mulher” (’ishah) está nas palavras “deixar” e “uma só carne”, que tem sua relevância muito mais pela mudança de ênfase e prioridade, do que pela mudança de status. Quando está solteiro, o indivíduo vive em um ambiente que prioriza a si próprio; ao casar-se, e constituir uma família, o ambiente muda e o indivíduo agora é incentivado a enfatizar o coletivo.

Acima de tudo, não mais viver sozinho é valorizar o outro além de si próprio.

VIVEMOS UMA SÍNDROME MODERNA QUE DEFINO COMO A IDEIA DA FELICIDADE INDIVIDUAL ABSOLUTA. ISTO FAZ COM QUE O INDIVÍDUO IDEALIZE UM TIPO DE RELACIONAMENTO COM EXPECTATIVAS INCOERENTES, QUE SEJA LIVRE DE FRUSTRAÇÕES, E APENAS COM EXPERIÊNCIAS INDIVIDUAIS FELIZES, E QUE JAMAIS COMPROMETAM SUA AUTONOMIA.

Neste texto, a expressão “deixar” pode ser interpretada como um processo no qual cada membro da família precisa compreender a importância de priorizar o coletivo em detrimento ao isolamento, com vistas para o crescimento da saúde familiar. Contudo, é relevante salientar que essa mudança de ênfase acontece de maneira dinâmica e não estática. O “deixar” acompanhará a experiência diária da família e de cada um de seus integrantes, durante toda a sua vida; é um processo onde a natureza egoísta é descartada à medida que a família decide que o amor é algo que deve ser recíproco.

A partir da lógica descrita em Gênesis 2, os sentimentos dos membros da família devem ser administrados para que não se tornem ações negativas ou atitudes rudes. A emoções são planejadas para nos levar para perto de Deus e, consequentemente, uns dos outros. Mesmo que a família seja um ambiente de diferenças e emoções complexas, o que fazemos com ambas é que as tornará certas ou erradas. Como identifica Esther Carrenho, “família é o ambiente onde se pode errar e recomeçar diversas vezes.” É um lugar de crescimento! Ou seja, o ambiente da família se torna um espaço para nosso amadurecimento emocional e um obstáculo para nosso excesso de autonomia.


Marco Lamarques é pastor, e trabalhou em igrejas do Mato Grosso e São Paulo. Atualmente é pastor do distrito central de Jacareí.