Mais de 800 mil pessoas cometem suicídio a cada ano. Elas procuram alívio para uma situação insuportável. Falar sobre o assunto é o primeiro passo para minimizar esse drama
Em setembro de 2014, na presença de ministros da saúde, embaixadores, administradores e profissionais da área, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou em Genebra, na Suíça, seu primeiro relatório detalhado sobre suicídio. O manual com 92 páginas apresenta um panorama global dessa epidemia e traz informações importantes para desfazer mitos e prevenir novos casos. O objetivo da OMS é reduzir a taxa de suicídio em 10% até 2020.
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Segundo as pesquisas e estatísticas apresentadas no documento, o suicídio é um drama social que atinge todas as regiões do mundo e diversas faixas etárias. Entre os jovens de 15 a 29 anos, ele é a segunda principal causa de morte. Mas os suicídios podem ser evitados por meio de uma estratégia multissetorial, que envolva políticas públicas, ONGs, profissionais de saúde e as comunidades, inclusive as igrejas, escolas, hospitais
e instituições adventistas.
DRAMA GLOBAL
Os suicídios produzem elevado número de vítimas: mais de 800 mil pessoas por ano e uma a cada 40 segundos. As estatísticas poderiam ser mais alarmantes se levássemos em conta a estimativa de que para cada pessoa que se suicida outras 20 tentaram tirar a própria vida. Em países em que o suicídio é ilegal, os números podem estar ainda mais distantes da realidade.
Apesar de esse comportamento ser crescente entre os jovens, proporcionalmente as maiores taxas de suicídio ainda ocorrem entre as pessoas com mais de 70 anos, sejam homens ou mulheres. Cerca de 75% dos casos são registrados nos países de baixa e média renda, mas é nas nações mais desenvolvidas que a disparidade de mortes entre homens e mulheres se acentua: o número de vítimas do sexo masculino é 3,5 vezes maior que do sexo feminino.
Em meio a tantas estatísticas preocupantes, existe uma boa notícia: entre 2000 e 2012, o número de suicídios caiu 9%. Uma possível explicação é a significativa melhora das condições gerais de saúde que ocorreu em alguns países na última década. Essa redução confirma que é possível melhorarmos esse quadro. Contudo, em algumas regiões a taxa aumentou recentemente, como na África, que registrou um crescimento de 38% nos casos.
MITOS E ESTIGMA
Deparar-se com alguém que tem ideias suicidas pode ser assustador e desconfortável. Geralmente se pensa que falar sobre suicídio seja má ideia, pois estimularia o ato. Infelizmente, esse mito isola os deprimidos em seu sofrimento e em sua busca por alívio (veja o quadro “Informações que salvam”). Pior ainda é a situação nos 25 países em que o suicídio é considerado crime, onde os sobreviventes vão para a prisão em vez de receber atendimento num hospital.
Ao contrário do que muitos pensam, uma das melhores maneiras de se evitar esse drama é oferecer abertura para o diálogo com quem nutre pensamentos suicidas. Os profissionais de saúde mental geralmente abordam os pacientes angustiados ou desesperados fazendo as seguintes perguntas: “Você pensa na morte ou em morrer?” Se a resposta for sim, eles continuam “Você pensa em se matar?” “O que ajudou você a ficar vivo até agora?” “Você estaria disposto a buscar ajuda caso essas ideias de suicídio persistam?”
Dessa forma, por meio da presença e do diálogo, as pessoas podem ser levadas a se afastar um pouco da dor e do sofrimento e a pesar as consequências dessa escolha radical. De acordo com o relatório da OMS, essa abordagem já salvou muitas vidas.
CUIDADOS COM A SAÚDE MENTAL
Como está delineado, as pesquisas indicam que há muitos fatores de proteção, como relacionamentos signficativos e pertencimento à comunidade religiosa, e de risco, como desordens mentais, uso de drogas e acesso a pesticidas, armas de fogo e certos medicamentos. Acima de tudo, a identificação precoce e a abordagem adequada são fatores-chave para assegurar que as pessoas recebam o cuidado de que precisam.
Outro elemento importante nesse processo é o apoio de comunidades acolhedoras. Tais grupos podem proporcionar suporte para pessoas vulneráveis e oferecer acompanhamento contínuo para elas, além de lutar contra o estigma social atribuído aos sobreviventes e ajudar na conscientização da sociedade sobre os mitos que envolvem o suicídio. Na Índia, por exemplo, visitas mensais de agentes comunitários de saúde às pessoas que tentaram suicídio diminuíram consideravelmente o número de casos. Imagine se nossas igrejas fizessem isso!
O PAPEL DA IGREJA
O suicídio poderia ser desmistificado se houvesse maior conscientização da sociedade, a começar pela igreja, o que permitiria que as pessoas buscassem ajuda mais prontamente. Precisamos falar sobre o suicídio, e as pessoas precisam ver a igreja como um refúgio seguro. Se elas se sentirem sem esperança, poderão vir a nós para encontrar a segurança em Cristo e um novo propósito para a vida. É para isso que nós, a igreja, existimos!
Nessa direção, podemos atuar individual e corporativamente. Por exemplo, hospitais e clínicas adventistas devem entender como parte de sua missão fazer o diagnóstico precoce dos pacientes que apresentam um quadro de angústia emocional já durante o atendimento clínico geral, e oferecer cuidados especializados contínuos, que integrem acompanhamento psicológico e espiritual. Por sua vez, as universidades adventistas que formam pastores, profissionais de saúde e psicólogos precisam treinar seus estudantes a reconhecer e tratar pessoas e seus familiares que passam por sofrimento emocional, numa abordagem que concilie os ensinos da Bíblia, os escritos de Ellen White e a verdadeira ciência.
Individualmente, os membros podem contribuir conhecendo os fatores de risco para a depressão e sabendo identificar as pessoas que apresentam esse quadro mental. Também podem dar um bom exemplo, seguindo um estilo de vida equilibrado e influenciando mais pessoas a se abster das drogas legais e ilegais, ainda que no uso recreativo delas, para que possam conservar seu bem-estar emocional.
Finalmente, uma igreja solícita consegue enxergar os pensamentos suicidas não como falta de fé, mas como um momento de angústia espiritual e uma súplica por apoio e compaixão. Prova disso é que o sobrevivente de uma crise suicida disse: “A presença compassiva de um amigo vale por dez anos de atendimento psiquiátrico.” Quando temos essa atitude, estamos ampliando o ministério de cura de Jesus.
AMPARO PARA OS QUE FICAM
O ministério do amor e da compaixão precisa ser estendido àqueles que ficaram num abismo solitário, profundo e escuro, pela dor de terem perdido um ente querido que cometeu suicídio. Apesar dos melhores esforços de familiares, amigos e profissionais de saúde, o suicídio acontece. Uma carta anônima, escrita por uma pessoa que era muito próxima de alguém que havia cometido suicídio, nos dá uma perspectiva: “Eu tinha uma família amorosa, um médico muito bom que me dava apoio, mas, quando você entra nesse túnel, parece que nada importa.”
Um profissional de saúde adventista experiente sofreu a perda de uma paciente que se suicidou. Embora isso tenha acontecido há mais de dez anos, ele se lembra do incidente como se tivesse acontecido ontem.
Foi numa quinta-feira por volta do meio-dia. A paciente havia estado em tratamento por mais de três anos com ideias suicidas crônicas, múltiplas tentativas de tirar a própria vida e várias internações no hospital psiquiátrico. O impacto imediato foi extremamente doloroso. Até um simples passeio pelo lago se tornou difícil para aquele profissional, pois o nome de uma loja que ficava à sua margem era Ponto Final. Parecia que quase tudo trazia à sua lembrança a morte daquela paciente. A família convidou o profissional para o funeral e lhe pediu que ajudasse a carregar o caixão. A cada passo que dava, ele pensava: “Aqui estou, levando você ao seu último descanso.” O consolo dele foi a gratidão da família pela assistência que ele havia prestado. Os parentes disseram: “Você deu três anos a mais para ela e para nós.”
Porém, a dor sentida por aquele profissional não se compara ao sofrimento da família da vítima. No intervalo de um ano, os pais da paciente, já idosos, faleceram em profunda tristeza. A mãe havia recusado tratamento e aceitado apenas cuidados paliativos. As duas irmãs foram dominadas pela dor e depressão e ficaram incapazes de trabalhar durante anos após a tragédia. Uma das irmãs lutou com um doloroso senso de culpa, o que a levou a também ter sentimentos suicidas. Todos os que estavam envolvidos sofreram. A fé que possuíam foi um dos únicos elementos que lhes trouxe consolo. Somente depois de anos de tratamento, as irmãs sobreviventes recuperaram a capacidade de trabalhar e conviver em família.
Por mais difícil que seja a recuperação, existe esperança. Sendo assim, não pode ser subestimado o papel dos amigos, pastores, conselheiros e da própria fé da pessoa enlutada. A mãe de um filho adulto que cometeu suicídio renovou sua fé na graça de Deus para aceitar o que viesse em seu caminho. Ela encontrou refúgio no cuidado das filhas e procurou a ajuda de um psicoterapeuta para lidar com a culpa e desenvolver a capacidade emocional para perdoar aqueles que ela achava que haviam contribuído para o fim desesperador de seu filho. Onde houver graça, existe esperança.
O MINISTÉRIO DE CURA DE JESUS
Como igreja, talvez ainda não tenhamos conseguido ser tão consistentes em prestar ajuda na área do sofrimento emocional como temos sido em outras áreas da saúde e do estilo de vida. Talvez não estejamos lendo a Bíblia de maneira tão clara quanto deveríamos. Se considerarmos as palavras do profeta Isaías (61:1-3), aplicadas por Cristo ao seu ministério (Lc 4:18-21), entenderemos nosso chamado para cuidar dos que estão em angústia emocional.
Ao descrever como Jesus ministrava, Ellen White, pioneira adventista, escreveu que Cristo estava atento às necessidades emocionais dos que entravam em contato com Ele. Era missão dele “restaurar inteiramente os homens; veio trazer-lhes saúde, paz e perfeição de caráter” (A Ciência do Bom Viver, p. 17). “Durante seu ministério, Jesus dedicou mais tempo a curar os enfermos do que a pregar” (p. 19). “O Salvador tornava cada ato de cura uma ocasião para implantar princípios divinos na mente e na alma. Esse era o desígnio de sua obra. Comunicava bênçãos terrestres, para que pudesse inclinar o coração das pessoas ao recebimento do evangelho de sua graça” (p. 20). “Cheio de graça, sensível e clemente, andava erguendo os desfalecidos e confortando os tristes. Aonde quer que fosse, levava bênçãos” (p. 24). “Cristo não conhecia distinção de nacionalidade, posição ou credo” (Evangelismo, p. 568). “Não passava nenhum ser humano por alto como indigno, mas procurava aplicar a toda pessoa o remédio capaz de sarar” (Refletindo a Cristo, p. 19).
Tendo Cristo como paradigma para a igreja, sigamos seus passos e manifestemos seu espírito: “Humildemente considerem os outros superiores a si mesmos. Cada um cuide não somente dos seus interesses, mas também dos interesses dos outros. Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus” (Fp 2:3-5, NVI).
BERNARD DAVY, médico e Mestre em Saúde Pública, é chefe do departamento de psiquiatria da Clinique La Ligniere, em Gland, Suíça; CARLOS FAYARD, PhD, é professor associado do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Loma Linda e diretor assistente para Assuntos de Saúde Mental do Departamento de Saúde da Associação Geral; PETER LANDLESS, médico, é diretor do Departamento de Saúde da Associação Geral