VIOLAÇÃO DO SAGRADO

SEGURANÇA – QUEBRANDO O SILÊNCIO

O abuso pode ser praticado por pessoas e em lugares que não imaginamos
HERON SANTANA


O que deveria ser uma experiência missionária
tornou-se um trauma para a suíça Christina
Krüsi, hoje escritora, artista, consultora em mediação e resolução de conflitos e defensora da prevenção ao abuso infantil. Na época, ela acompanhava os
pais em um projeto de tradução da Bíblia para línguas
nativas na Bolívia. Dos 6 aos 10 anos (de 1974 até
1979), quando deixou o país sul-americano, Christina sofreu repetidamente abuso sexual praticado por cinco missionários.
Descobriu-se que outras 16 crianças também eram
regularmente abusadas por um círculo mais amplo de
homens. Os abusadores pressionavam as crianças para
manter a violação em segredo, dizendo que, se contassem a alguém, a missão fecharia e os indígenas iriam para o inferno.

AS IGREJAS PRECISAM SER RADICAIS E INTRANSIGENTES NO COMBATE A ESSE MAL, CAPAZ DE MACULAR A IMAGEM DE DEUS NA MENTE DE PESSOAS INDEFESAS E VULNERÁVEIS

Apesar de ter sofrido por anos em silêncio,
Christina finalmente denunciou o caso e escreveu um livro de memórias: Paradise Was
My Hell (O Paraíso Foi Meu Inferno).

Além de ter participado de um documentário na
TV suíça intitulado Missbraucht im Namen
Gottes (Abusada em Nome de Deus, em tradução livre), ela também foi co-fundadora
da Christina Krüsi Foundation, dedicada
à proteção de crianças. A propagação dos
horrores que ocorreram em solo boliviano
levou as organizações cristãs responsáveis
pela missão no país a pedir desculpas e adotar medidas de proteção em igrejas, instituições e escolas.
Uma dessas medidas foi a criação, em
2006, da Safety Child and Protection Network (Rede de Segurança e Proteção Infantil), formada por agências missionárias, ONGs religiosas e escolas cristãs que buscam colaborar mundialmente para conectar, educar e proteger as crianças por meio de diversos programas.
ANTÍTESE DO EVANGELHO
“Como cristãos, acreditamos em um evangelho que é sobre um Deus Se sacrificando para
preservar e proteger os indivíduos. Quando
se trata de abuso sexual infantil, muitas igrejas e organizações cristãs preferem sacrificar
indivíduos para se protegerem. Terminamos
vivendo a própria antítese do evangelho que
sofreu repetidamente abuso sexual praticado por cinco missionários.
Descobriu-se que outras 16 crianças também eram
regularmente abusadas por um círculo mais amplo de
homens. Os abusadores pressionavam as crianças para
manter a violação em segredo, dizendo que, se contassem a alguém, a missão fecharia e os indígenas iriam para o inferno.
pregamos. As consequências são
devastadoras”, lamentou o ex-promotor de Justiça Boz Tchividjian, professor de Direito na
Universidade da Liberdade, nos Estados Unidos. Atuante no
combate ao abuso em ambientes religiosos, o neto do famoso evangelista Billy Graham é
fundador e diretor executivo da Grace (sigla em inglês para Resposta Divina ao Abuso no Ambiente Cristão), organização sem fins lucrativos criada para ajudar
igrejas protestantes a lidar de forma justa com os incidentes
de abuso sexual.

De acordo com um relatório sobre prevenção da violência
contra crianças, divulgado em 2020 pelo Fundo das Nações
Unidas para a Infância (Unicef), cerca de 300 milhões de vítimas
entre 2 e 4 anos sofrem regularmente violências por parte
de seus cuidadores ao redor do mundo. Estima-se que 120 milhões de meninas tenham sofrido algum tipo de abuso sexual antes dos 20 anos de idade.
Chamam atenção os dados que apontam para a recorrência
de casos em contextos religiosos. Um levantamento feito em
2019 pela Agência Pública mostrou que o Disque 100, canal do
governo brasileiro, recebeu, nos três anos anteriores, 462 denúncias de violações praticadas por
líderes religiosos. Em 167 desses casos, as notificações envolviam
acusações de violência sexual.
Esse foi o tipo de denúncia mais comum que o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos recebeu em 2016.
Ambientes religiosos como igrejas e templos são os lugares em que mais teriam ocorrido as violações – quase uma a cada quatro denúncias indica
esse tipo de local. O número é próximo ao das denúncias que
apontam para a casa da vítima.
Na América Latina, a Child Rights International Network
(Rede Internacional de Direitos da Criança), organização com
foco nos direitos das crianças, pesquisou casos de abuso praticados por líderes religiosos nos
países desse território. A entidade concluiu que a região estava à beira de uma “terceira onda” global de escândalos, assim como ocorreu na América do Norte e Europa. Na tentativa de reverter esse cenário, a
organização apoia sobreviventes latino-americanos para fazer campanhas em seus países
pela verdade, justiça, reparação e reforma.
São iniciativas que ajudam as igrejas a enxergar a necessidade
de ser radicais e intransigentes no combate a esse mal, capaz
de macular a imagem salvadora de Deus na mente de pessoas indefesas e
vulneráveis ao abuso exercido por lideranças que deveriam acolher, servir e salvar.


HERON SANTANA é jornalista e lidera o departamento de Liberdade Religiosa da Igreja Adventista do Sétimo Dia na Bahia e no Sergipe

MEDIDAS DE PROTEÇÃO
A Rede de Segurança e Proteção Infantil identificou sete elementos-chave que podem ser seguidos por organizações religiosas para garantir a segurança das crianças.

GOVERNANÇA
Um programa eficaz de segurança infantil precisa
incluir os controles administrativos necessários
para orientar as atividades da equipe (funcionários
e voluntários), buscando manter um ambiente
seguro e saudável para as crianças

MAPEAMENTO
Outro passo importante é ter um conjunto
escrito de definições básicas dos tipos de danos
que as crianças podem sofrer, uma espécie de
mapeamento. As diretrizes devem levar em
consideração as diversas culturas representadas
no contexto da organização.

TRIAGEM
Antes de definir colaboradores, voluntários
ou líderes leigos, a organização deve realizar
entrevistas e verificar antecedentes para evitar
possíveis ocorrências devido à falta dessa medida.

TREINAMENTO
É fundamental oferecer também treinamento para todos
os líderes e voluntários, com foco na promoção de uma
cultura de proteção das crianças e medidas claras que
garantam a segurança delas.

. PROTOCOLOS
As organizações precisam ter protocolos de cuidados
infantis para ser aplicados em toda a sua estrutura.

RESPOSTA
Estabelecer e manter a capacidade de responder pronta e
objetivamente a qualquer relatório de preocupação com
a segurança infantil, seja com base em eventos atuais ou
na história da organização ou de seus membros.

CUIDADO
A organização deve cuidar de seus servidores e de
outras pessoas que possam ser afetadas, conforme as
necessidades forem avaliadas.

DECLARAÇÕES CONTRA O ABUSO
Por não estarem imunes aos casos de abuso sexual infantil, as comunidades religiosas precisam fi car alertas e promover ações de combate
a essa prática. Isso levou a Igreja Adventista do Sétimo Dia a votar documentos que propõem ações de prevenção em suas instituições e
templos, bem como procedimentos administrativos relacionados ao agressor e restaurativos referentes à vitima. Escanerize os códigos para saber mais.